Titina me escreve enquanto se recupera da cirurgia nas narinas e conta que está lendo "Crime e Castigo". Dostoievisquamente, não sei se ela merece uma porrada dessas a título de pós-operatório. Mas, se está gostando, como celebra, o romanção quase asmático há de ter sua dose de mezinha. Eu, se fosse comigo, perdia logo o fôlego - tão necessário a quem operou o nariz. Mas vou socializar aqui a resposta que enviei pra ela. Pode ser que sirva para mais alguém que se prepara para enfrentar a sala de cirurgia, nunca se sabe:
"Crime e Castigo" é soturno, pesado, sorumbático, profundo, meio demoníaco no retrato que constrói. Li meio a custo, admito. Achei meio hard atravessar aquele mar turvo de palavras duras. Estranhei também a atmosfera russa, que me pareceu assim como uma mistura da branca e incômoda umidade londrina com aquela sensação de fim de mundo que acomete quase todo mundo naquela horinha que antecede o cair da noite - e isso tudo são sensações meio "gráficas", pois que derivadas tão somente do poder sugestivo das palavras impressas. Londes nunca me viu nem eu a ela. Rússia, então, é quase com uma terceira dimensão com a qual eu posso ter no máximo contatos imediatos de quinto grau - quer dizer, o abraço da leitura.
Então: ainda assim, viajei pela mente daquele Raskolnikoviski - cuja grafia, estou certo, não passa nem perto do que escrevi aqui, mas vocês entenderam - com um certo pavor na ponta dos dedos que virava cada página. Foi travessia difícil e a comparação que me ocorre agora, talvez pelo uso dessa palavra mesmo, é com as danações de um Riobaldo, as maquinações para-humanas que nos legou o bruxo João Guimarães. Só que o sertão mineiro, com sua solaridade ainda que sombria, sua luminosidade que tanto clareia quanto cega, pareceu-me mais próxima, mais terra-a-terra, mas aqui. "Crime e Castigo" é mais pra muito longe - um sertão estrangeiro cheio de musgo, paredões e miseráveis congelando em outras eras, sem a secura poeirenta e o calor telúrico de nós outros.
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