Nossa passagem de ano valeu um vintém de cobre de Cora Coralina. Ou seja: uma fortuna. Explico: nos últimos dias de 2007, despejamos malas, livros, brinquedos e outros apetrechos nos desvãos do Palio e descambamos rumo à cidade da poeta sexagenária, aquela descoberta nos idos dos 80 por um Drummond dominado por versos brasilieiramente goianos. Cidade de Goiás, antiga capital do estado homônimo, hoje vulgarmente chamada de Goiás Velho, titulação que não agrada à população local. Eles preferem somente "Goiás", numa limpeza verbal condizente com as feições e o feitio da cidade. No mapa propositadamente mal esboçado da passagem inteira, com uma semana livre pela frente, possibilidades de felicidade na capital propriamente dita - Goiânia, onde estivemos por um dia - e, para fechar (digo, para abrir) o ano, duas noites em Pirenópolis, que a vontade convocou.
Esse é diagrama externo de nossa passagem. Seus momentos intestinos comportam uma experiência ímpar, como ademais têm sido nossas amadoras viagens antes mesmo da presença nesse mundo de Cecília e Bernardo. Pois bem: saímos de 2007 e entramos em 2008 refugiados no precioso silêncio de um hotel-fazenda (mais para "pousada-fazenda") em Goiás Velho, quilometrozinhos de estrada de terra da sede do município, que visitamos uma ou duas vezes. Por exemplo, no quesito dessas visitas, uma delas se deu nas horas que antecederam a entrada deste janeiro. Noite, embarcamos no Palio para mais uma excursão à cidade, quase todos branqueados, as crianças já meio cansadas devido ao avançar da hora, em busca de um repasto reveiônico - e quem conhece Goiás Velho sabe que lá a comida é nota cem mas a espera é nota mil, no sentido inversamente proporcional à grandeza numérica. Será por isso que, quando afinal desaba nas mesas, os pratos são tão bons? Outra história.
Alimentados e à beira da zero hora, desabou, saborosa como os tais pratos, uma chuva de gotas cantantes. Sinfonia final à guisa de show copacabânico. A cidade tomada, praça superlotada, cancioneiro goiano sem pudor pelos alto-falantes - e nessas horas se vê que Goiás Velho também sabe ser festiva como Pirenópolis, embora na superfície pareça sempre o contrário. Mas não ficamos (Rejane queria participar, me disse depois, eu queria dormir, nem preciso dizer, os meninos irritados de excitação e sono, enfim). Pegamos o caminho de volta, a estradinha pedregosa, rota de desenho infantil à luz dos românticos relâmpagos de filme de terror. Chegamos à Manduzanzan - é o nome da fazenda, fusão das palavras que batizam dois riozinhos que se cruzam por lá - e nos abrigamos no chalé de dois quartos. Havia ainda algum zum-zum-zum na fazendinha, restos da ceia que promoveram por lá.
Mas logo tudo se aquietou - e é precisamente aqui, neste momento, que 2008, iniciado já há uns bons dez minutos, abriu seu panorama anunciador. Só pra não deixar pontos obscuros, esclareço antes que a passagem propriamente dita foi dentro do carro, tentando sair da área urbana e pegar o início da estradinha. Alimentados, abrigados, esquentados sob lençóis e cobertores, as crianças dormindo, a tempestade tuberculosa dando seus espirros luminosos lá fora, o aconchego lá dentro, a cantiga retilínea do grilo, a consciência da presença de bois, vacas e cavalos lá fora, o verde momentameamente disfarçado pelo cobertor escuro-abrilhantado de estrelas da noite renovada, já quase dormíamos.
Foi quando o escuro se fez completo. Um raio mais atirado enlaçou a eletricidade artificial e o ano novo virou um inesperado blecaute. Mágica suspensão, promessa de início de ano límpido. Nada de luz artificial, nada de interruptores ansiosos, televisores tagarelas. Só o escuro, a voz do temporal perto e distante - e a eletricidade natural do relâmpago serrano.
Por esse relato, podemos dizer que começamos 2008 em branco - ou em preto. Ou em vácuo, bem vindo nada onde pouco a pouco vamos colocando nossas pequenas metas, nossos defeitinhos diários e um punhado de expectativas mensais. Foi assim como um recado: nada de exageros, opulências, grandiloquências. Um ano do tipo vintém de cobre - que é o título de um livro de Cora Coralina onde a poeta de Goiás celebra o valor imenso das coisas de pouca monta.
Um comentário:
Tião, estou enviando por Rejane o VHS com o filme Vila Boa de Goyaz, de Vladimir Carvalho. Rejane disse que viu o filme pouco antes de Bernardo nascer no Canal Brasil. Não deixe de assistir agora. Viaje pelo universo de Cora Coralina nas lentes do maior documentarista do Brasil. Chance de conhecer Goiás Velho antes de se tornar Patrimônio da Humanidade e da enchente que acabou com a cidade no início deste século.
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