terça-feira, 12 de abril de 2011

O repórter e o assessor


O jornalista Ricardo Kotscho foi um dos meus faróis de juventude. Uma assinatura que sempre busquei nas páginas do Jornal do Brasil ou da Folha de S. Paulo, conforme a época e o lugar onde ele estivesse trabalhando. Um modelo, exatamente como ocorre na nossa juventude profissional, quando os anos de formação exigem que se tenham alguém ou algo como referencial do que é o caminho, das possibilidades que uma profissão pode oferecer. Um rumo, sedimentado, para além dos jornais e revistas, no livro "A Prática da Reportagem", em que Kotscho, em parceria com Gilberto Dimenstein - que já não era bem a minha praia - organizou sua, digamos, doutrina para jovens jornalistas em formação. O que diferenciava RK dos demais que assinavam suas reportagens nas edições dominicais da grande imprensa, numa época em que se pensava duas vezes antes de tacar o nome do autor do que quer fosse na página do jornal? Uma sensibilidade à parte para colocar o homem comum - seus dramas, suas conquistas, sua visão de mundo que, ao contrário do que se pensava já então, também tem muito o que acrescentar ao espírito de cada tempo - no corpo de uma reportagem. Chamavam, glosa Ricardo, de "matéria de pipoqueiro". Imagino o quanto o jornalista não foi visto com olhos tortos por colegas agarrados em informações de gabinete - e quanto mais elevado na hierarquia do poder este gabinete, maior a soberba e o desprezo pela vida brasileira lá embaixo.

Tudo isso me impressionava, talvez pelo fato de eu vir daquela vida brasileira nos andares bem inferiores da curva de nível sobre a qual se assenta, desde sempre, a nossa mui brava imprensa. Então o tempo passou, um certo Luiz vindo dessa mesma camada quase subterrânea virou presidente da República e, arrastado junto a esse movimento histórico que vai da vida nas redações da época dos militares até a ascenção do presidente-operário, lá está Ricardo Kotscho. Um assessor de imprensa das campanhas de Lula, um comandante da comunicão oficial do presidente eleito. Nâo havia, portanto, como não ler este "Do Golpe ao Planalto", livro de memória do meu antigo ídolo profissional. As lembranças de RK fazem reverberar na minha ótica de leitor o flash back da minha própria experiência, bem menor que a dele, infinitamente menos significativa, mas também abastecida por um certo espírito de aventura que é o que caracteriza a "vida de repórter" que, por sinal, é o subtítulo do livro: "Uma vida de repórter".

Lendo RK contando suas aventuras da Amazônia à histórica série sobre as mordominas de uma Brasília de privilégios oficiais e censurada derrada durante a ditadura militar, não tenho como não deixar de lembrar as mil e uma viagens que fiz pelo interior do RN a serviço da Tribuna do Norte, Dois Pontos, Diário de Natal, TV Cabugi. É capaz de o leitor achar que estou confundindo tempos e pessoas, hipervalorizando minha débil figura. Pode ser, mas é honesto. E se digo isso é querendo dizer que o livro é especialmente indicado para quem, como RK, como eu, como Carlos Magno Araújo, como Rubinho Lemos, foi repórter de jornal um dia. De preferência na década de 80, quando os aquários não eram tão determinantes assim, a internet ainda não havia liquefeito o que pode haver de mais sólido no levantamento e publicidade de informações e uma certa vaidade ridícula - por completamente injustificada - não havia ainda tomado conta da nova geração que nem um diploma pode mais ostentar.

O problema de "Do Golpe ao Planalto" é que o livro foi atropelado pelos fatos - por um fato, o tal escândalo do mensalão, o grande butim informativo que a gente, mesmo sabendo que não vai ter no livro, aguarda, como uma espécie de piloto automático do ato da leitura. Por RK saiu do governo pouquinho antes de o caso estourar - e a honestidade intelectual dele é tudo o que se precisa para saber um pouco mais como tudo aquilo foi acontecer, organizar um pouco as informações tumultuadas da época, compreender sem preconceitos, achar erros, desvios de conduta e possíveis alertas onde quer que eles estivessem sem a necessidade compulsiva que existe de resumir tudo a um suposto petralhismo endireitado para consumo de certa classe média ressentida com a distribuição de renda que ocorreu paralelamente a tudo isso. Mas o livro termina antes, porque a proposta de RK é cobrir o período que vai do pré-64 até o momento em que ele, exausto, deixa o Palácio do Planalto.

Para resolver o problema, ele acrescentou um pósfácio. Mas quando a gente pensa na extensão e no impacto do episódio todo - que, por sinal, ainda não terminou e está voltando à tona este ano por causa do julgamento no STF - fica com a sensação de que ele, sozinho, renderia outro livro. Só que não seria justo cobrar de Ricardo Kotscho esta nova memória, sobretudo de algo que ele não viveu efetivamente, nos bastidores do poder. A tarefa fica para outro e, não se engane, um dia alguém a realiza assim, com distanciamento, brandura e seriedade. Três elementos muito em falta quando o assunto é este.

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