terça-feira, 12 de abril de 2011
O blues do filósofo
No post anterior, uma das músicas citadas é o "Blues da Piedade", de/com Cazuza. Aquela onde se pede, numa oração profana e musicada, compaixão para com as almas que já nascem com cara de abortadas. Pra quem tem a alma bem pequena, remoendo pequenos problemas e querendo sempre aquilo que não tem. Pra quem vê a luz mas não ilumina suas minicertezas. Essa letra poderia muito bem ser um dos antissermões poéticos e desvairadamente antirreligiosos de Zaratustra, o oráculo semissurreal criado pelo senhor Friedrich W. Nietzsche para vocalizar sua proposta de formação de um novo homem. Formação, não - descoberta, incentivo a que este novo homem, superior às cercas que detem sua própria natureza e geram toda sorte de desvios com os quais a espécie convive há milênios, bote a cara para fora e diga a que veio.
Antes de ser um discurso anticlerical caótico em seu jorro - e por isso mesmo, em grande parte incompreensível mesmo -, "Assim falou Zaratustra", o clássico da filosofia poetizada, é uma Bíblia ao contrário que, exatamente por isso, reafirma, quanto mais o nega, o caráter religioso que nestes mesmos termos insiste em ver como uma deformação do ser humano. Nada mais torto do que a linguagem enviezada de Nietzshe via Zaratustra. E por isso mesmo, nada mais aberto a toda sorte de interpretação. Esta é apenas a minha. Nâo deve ser à toa que o livro vem com um subtítulo provocador: "um livro para todos e para ninguém".
Este "Zaratustra" é bem isso: uma provocação sublime, se é que as duas coisas combinam - e combinam, percebe-se encantado ao ler suas antiparábolas tão incisivas quanto piedosas. Porque por baixo de todo aquele empurrão que o filósofo megalômano e desvairado dá na pobre criatura humana distraída à beira do abismo - nós aqui do lado de cá das páginas - existe, de maneira velada, a mesma comiseração solidária que o "Blues da Piedade" dos toca-discos dos anos 80 reverberava.
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