sábado, 14 de março de 2009

Mais do mesmo


Conforme anunciado, seguem alguns dos bons trechos da "Tempestade de ritmos", de Ruy Castro, que cutuca com alfinete verbal bem afiado nosso culto a Chat Baker, rabisca com caneta estourada mas certeira nossa crença na figura do músico de jazz como um miserável iluminado e ainda liga os pontos para construir em palavras a verdadeira extensão daquele músico brasileiro só recentemente - e meio tarde mais - redescoberto entre nós, o pernambucano Moacir Santos. Aos trechos:



  • Um dia alguém ainda escreverá sobre as relações entre o sobrenatural e o jazz. Talvez só o sobrenatural seja capaz de explicar Clifford Brown.



  • Desde Charlie Parker, a romântica e ingênua ideia de que heroína e genialidade eram sinônimos tornou-se um clichê do jazz. Os músicos que iam morrendo pelo caminho não assustavam os novos usuários.



  • É a velha assertiva de preservar o mito romântico do jazzista como uma espécie de "bom selvagem" de Rosseau: o negro miserável e perseguido, escravizado à música e à droga, mas firme e incorruptível no gueto, em seu quarto cheio de percevejos. Duke Ellington, a caminho de seu alfaiate, tremia de medo dessa teoria.



  • Louis Armstrong não foi apenas o cantor de jazz mais influente do século XX. Foi também o cantor popular mais influente do século.



  • O número de cantoras que pensam dever a Billie (Holliday) sem saber que devem a Louis (Armstrong) é infindável.



  • Bing Crosby foi o primeiro intérprete, branco ou negro, a assimilar a importância de Louis Armstrong como cantor. Dick Farney e Lúcio Alves - sim, todos são filhos estilísticos de Bing, donde netos de Louis. E, se se pensar nos discípulos de Sinatra (bisnetos de Louis!), a lista não teria mais fim.



  • Chat Baker: c0mo trompetista, ele até que foi interessante. Talvez por ter sido o primeiro a tentar ser o Miles Davis branco. Mas Chat se preocupou tanto em reproduzir a sonoridade suave e relaxada de Miles que se esqueceu de assimilar o que este tinha e melhor: a riqueza de ideias em cada solo.



  • Não que Ella fosse a "melhor" - embora houvesse quem a definisse como a melhor de todas, por ser mais completa do que Billie, embora menos emocional, e mais emocional do que Sarah (Vaughan), embora não tão completa.



  • De Nat "King" Cole a Carmem McRae, de Johny Mathis a Diana Krall - todos mestres de um tipo de canto em que a letra é tão importante que se torna quase um recitativo. É um tipo de estilo a que nos acostumamos a dar de barato, como se tivesse sempre existido, mas, na verdade, só se impôs a partir da Segunda Guerra, quando os crooners se libertaram ds big bands e começaram a cantar com trios ou com pequenos conjuntos que lhes davam mais liberdade.



  • Cole (Porter) trabalhava no limite entre a finesse e a grossura, e contrabandeava os mais ricos duplos sentidos para suas letras. Mesmo quando celebrava uma prostituta (em "Love for sale"), era como se falasse de uma rainha.



  • Para a geração de Porter, (Rodgers &) Hart, (George) Gerswin, (Johny) Mercer e Dorothy Field, a construpção de uma letra era como projetar uma casa: com estrutura, fundações, divisão de aposentos e decoração de interiores. Um letrista daquela turma podia passar semanas em busca de uma rima interna. Não se fazia pouco da inteligência do ouvinte - embora eu suspeite que o temor de cada um daqueles gênios era o de ser julgado pelos seus próprios pares.



  • Sua síncope parecia estar nas regiões mais sombrias, densas, pesadas da música: as tonalidades cavernosas do sax-barítono, do trombone-baixo e da mão esquerda do piano. Toda essa riqueza, contida em seus arranjos e composições, começaram a inundar e a fertilizar uma geração de músicos brasileiros - não fosse a súbita mudança da música popular a partir de 1966, quando os praticantes de vários instrumentos que não as guitarras foram praticamente expulsos do mercado. (sobre Moacir Santos)

Nenhum comentário: