terça-feira, 23 de dezembro de 2008
"A Cor Púrpura" para 2009
(Esta postagem é especialmente dedicacada à nossa amiga Marcya Reis)
Nos primeiros cinco minutos desse filme que, tantos anos depois, ainda é a cara do Cine Nordeste, no centro de Natal, somos apresentados a uma série de fatos e situações repugnantes, violentas, abusivas, intoleráveis. Celie - negra, pobre, feia e mulher - como dirá mais tarde um de seus tantos algozes, é ainda uma criança, mas já é uma adulta retirada a fórceps de uma infância estupidamente fatiada. Ficamos sabendo, somente naqueles cinco minutos iniciais, que ela está grávida pela segunda vez. E o pai do bebê é seu próprio pai que, assim como fez com o primeiro filho, também some com o segundo mal ele acaba de sair da barriga da mãe-menina. Mais uns dez minutos e Celie será praticamente vendida a um desconhecido de quem se torna um híbrido de criada e escrava sexual. Temos aqui violência contra criança, estupro seguido e seqüênciado, incesto, miséria material e moral. Em 1985, era demais para um filme americano convencional - e mais ainda quando se sabia, de antemão, que o diretor era o ex-E.T Steven Spielberg, o magnata do entretenimento que sabia fazer chorar sem que doesse tanto.
Pois em "A Cor Púrpura", tudo doía, você deve estar lembrado - sobretudo naquele início que compactava em poucas cenas um volume enorme de lixo humano e degradação social. Ontem eu revi o filme que há tempos não apreciava outra vez. Numa cópia em DVD lançada recentemente, cores estalando, brilho fervente em cada linha da tela caseira, os poros dos personagens conferindo ainda mais vida a cada situação, cada recuo e cada enfrentamento. E, ainda que impressionado com a condensação de desgraças apresentadas no início do filme, o que me saltou aos olhos acabou sendo outro elemento - este sim, spielberguiano por natureza, e normalmente a parte que, já percebi, é o que mais me faz apreciar o cinema desse moço forjado pela indústria mas capaz de renová-la mesmo enquanto máquina de fazer diversão e produzir dinheiro.
Este elemento chama-se "encantamento": está presente nas fantasias sobre a guerra que distraem o menino-herói Christian Bale em "O Império do Sol"; está impregnada na relação entre o garoto que abriga o só a princípio repugnante extraterrestre em "E.T."; está marcada qual DNA na seqüência de "Parque dos Dinossauros" em que cientistas, crianças e nós, o público, vemos pela primeira vez os dinos sobre a superfície da terra; está impressa em todo e qualquer momento daquela jornada fantástica que é "Os caçadores da arca perdida" e suas continuações. No caso de "A Cor Púrpura", a história era outra. Na época, vocês lembram que Spielberg estava tentando ganhar aquele Oscar sempre negado a ele - e, para tanto, buscava fazer o que chamam de "filme adulto".
Toda classificação é inútil nessas horas, todo mundo sabe. Mas o fato é que o cineasta recorreu a um tema forte - aquele congregado de misérias do Sul racista de um EUA primitivo - e não fugiu dele na hora de filmar tudo. Mas há uma lei no mundo do cinema convencional que vale por um Estatuto de Proteção aos Expectadores Mais Arredios à Reconstrução da Realidade na Arte. E foi dela, visivelmente, que Spielberg se valeu para tornar seu filme adulto mais palatável, embora tecendo considerações sobre aquele punhado de temas desagradáveis que estão listadas no primeiro parágrafo deste texto. Se você assistir ao filme hoje, sem a ansiedade dos tempos em que ele foi lançado, vai notar que Spielberg recorreu a imagens líricas que pontuam cada cena - mesmo as mais violentas e exasperantes, ou sobretudo estas.
Visto deste ponto de vista, "A Cor Púrpura" é, como o próprio nome já sugere, um belo poema visual composto como uma harmonia à parte de uma bela música enquanto a gente acompanha as desgraças contadas pela melodia convencional. Estou falando, por exemplo, das flores púrpuras que surgem logo no início do filme, à frente do foco das duas personagens principais que aparecem ao fundo, brincando. Estou falando da brincadeira infantil de bater as mãos, essa singeleza que abre e fecha o filme, pode reparar. O mundo é cruel, meu amigo, a negra Celie come o pão que o Diabo deixou queimar no forno de propósito, é jogada daqui para acolá e separada abruptamente da irmã que tanto ama, apanha durante o filme inteiro mas, note, no início e no final de sua jornada o que sobressai, o que fica é uma sublime brincadeira infantil de bater as mãos na seqüência certa, entre risos e sorrisos. Apesar de tudo - e todo mundo hoje em dia tem idéia do que seja esse "tudo" - o que fica é a graça de uma brincadeira de criança. Lembro da expressão usada por minha cunhada Titina, falando sobre uma lembrança de infância, ela e as irmãs deitadas sobre a barriga do pai, seu Chico. "Isso fica, viu!", costuma dizer Titina. É verdade - mas isso de presentir o que fica e o que passa é para quem tiver olhos para ver, como Titina e as irmãs têm, como Celie teve, como o filme celebra.
É bom que o Sopão encerre o ano falando desse filme já esquecido, porque ele nos dá um motivo de falar de poesia na acepção mais rica da palavra: esse sentimento que independe mesmo da capacidade de escrever e se abriga também na astúcia e no desprendimento de saber ver. O que tem de poeta que não precisa publicar por aí não é brincadeira - eles "são" poesia, e pronto. Outro dia, a cronista gaúcha Martha Medeiros escreveu algo na sua coluna do jornal "O Globo" que a gente deveria pendurar na parede para lembrar a toda hora: era uma mera, banal, comum lista de coisas que ela vê em casa todo dia e que têm alto poder de sugestão poética: o pedaço de bolo que sobrou e ficou num pires na geladeira, uma velha foto dos avós no porta-retrato, essas coisas. Aqui em casa tem um negócio assim de que eu gosto muito: a pintura gasta no muro que aparece ao fundo da janela da cozinha. Lembra o interior, o ritmo e a cor da vida no interior. Relutarei muito em pintar esse muro - parece que, assim, desenhado pela natureza que a cada chuva vai dando suas pinceladas, fica melhor. Neste fim de ano, pare e olhe em torno você também - há matéria de poesia que vai dar mais significado para a sua vida aí pertinho mesmo de onde você lê este texto agora. Pelo menos um, nem que seja um. Basta ter astúcia e desprendimento para ver. Muito provavelmentes sera algo ordinário, esquecido, que a graça da vida também passa pela aparente banalidade das coisas quietas.
Voltando ao filme: ao longo de "A Cor Púrpura" temos aquela sensível cena em que Celie, limpando a casa do novo "marido", vai retirando a casca de poeira que encobre uma parede e surge, surpresa, a pintura antiga de uma flor; temos os manuscritos em papel de cartas que vêm e vão ao longo de toda a história; temos as compotas límpidas na cozinha que é o mundo que restou para Celie e no qual ela circula tão à vontade embora cercada de desprezo por todos os lados; temos o exemplar de "Oliver Twist", com aquela gravura antiga na capa, com o qual Celie acaba de aprender a ler; temos a cortina de renda tremulando levemente como pano de fundo de uma das cenas em que a personagem é mais humilhada; temos, primor das delicadezas, o velho papel amassado onde está escrito "sky", outra peça de seu aprendizado da leitura, e que torna-se um vestígio dos tempos em que Celie ainda não havia sido separada de sua irmã. Um pedaço de papel velho, desbotado, encarquilhado, despeja no filme, quando aparece, um caminhão de poesia visual. Você há de ter um desses aí pelas suas gavetas. Apegue-se a ele e despeje uma poesia a mais na sua vida.
E tem mais: a luz que entra pelas portas e janelas da capela na cena do casamento de Harpo e Sophia (Oprah Winfrey, estonteante, carregando o filme para si sempre que aparece); o canteiro de girassóis, o blues que Shug canta para Celie ("Sister..."), assim como a dedicatória que faz antes de começar ("Ela cuidou de mim quando eu estava doente"; uma maneira terna de dizer "ela teve paciência comigo quando eu estava de porre"); o enfeite de vidro que fecha a cena do beijo de Shug em Celie; o boneco de neve que surge por trás de um aperto de mão; a canção de trabalho dos homens que constroem a ferrovia.
Por tudo isso, essa digressão quase paulocoelhiana sobre "A Cor Púrpura" se presta bem ao objetivo quase involuntário dessa postagem: desejar Feliz Natal e Ano Novo realmente renovado aos amigos leitores do Sopão. No início, não era bem esse o propósito - mas o filme, a lembrança do filme, o texto, a lembrança dos amigos, foi levando para esse lado e achei melhor não bloquear. Miremo-nos todos no exemplo daquela Celie tão triste e tão doce que nos deram Spielberg e Whoopi Goldberg. E espalhemos entre nós e quem nos quer bem esse espírito benfazejo de saber valorizar as pequenas coisas mesmo em meio ao maior sofrimento. Ou, como é muito mais desejável, quando tudo parece e está indo muito bem.
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