quarta-feira, 14 de abril de 2010

O motor da tragédia


Até a semana passada, era apenas consensual a idéia de que o lixo, quando mal administrado, é uma ameaça para o homem. Depois dos desmoronamentos no Morro do Bumba, em Niterói, estado do Rio, o que era uma suspeita de natureza acadêmica virou constatação trágica: o lixo mata. A ecologia, assim como se dizia da máfia, não perdoa. Melhor não mexer com ela.

No final de semana, a estimativa ainda era de centenas de mortos sobre os escombros de uma triste combinação de chuvas, terrenos frágeis, solo usurpado, rocha fissurada, gás metano e, é importante não esquecer, um pouquinho de especulação imobiliária, já que ninguém em sã consciência vai morar num penhasco se houver terreno e casa a preço humanamente decente em outra parte da cidade.

O motor dessa tragédia, o mais recente capítulo deste compêndio de desgraças que vem sendo o ano de 2010, é múltiplo como convém aos fenômenos ditos modernos. Uma coleção de motivos combinados que mais parece o parecer final de uma investigação daqueles acidentes aéreos que deixam o país perplexo. Porque nunca é só uma falha humana, por mais que os investigadores precisem ser objetivos e focar sua análise num ponto suficientemente grave que acalme nosso clamor com um mínimo de racionalidade.

A morte estimada de mais de cem pessoas em Niterói já provocou toda espécie de análise. Só não ocorreu a ninguém ainda a idéia, que obviamente seria considerada estapafúrdia, esquerdista, estatizante e inspirada pelo MST, de criar um instituto destinado exclusivamente a estudar os motores de nossas tragédias.

Uma espécie de IBGE das desgraças nacionais, onde sociólogos defasados, com óculos de aros grossos e expressões circunspectas, queimariam as pestanas analisando os desastres passados para prevenir os futuros. A estatal das desgraças se manteria em funcionamento até o dia em que apenas o imponderável – esse último recurso contra o ateísmo – pudesse causar novas tragédias.

Os arquivista do IBGE do motor das tragédias teriam um baita trabalho pela frente. Aqui mesmo, no RN, há um vasto material para sustentar as análises. A tragédia de Igapó, na manhã de 23 de novembro de 1982, quando um carro derrubou um cabo de alta tensão no bairro da zona norte, matando 23 pessoas – muitas delas gente que se aproximava para socorrer as vítimas, quando a rede elétrica foi inesperadamente religada. Motor da tragédia: negligência para com o poder da eletricidade.

Aquele ônibus desenfreado que esmagou uma procissão inteira na entrada de Currais Novos. Motor da tragédia: uma combinação de falha mecânica, decorrente de descaso humano, com um certo excesso de confiança, de natureza até arrogante, que o exercício da fé religiosa implica. Claro que uma procissão num lugar que funciona, na prática, como uma rodovia, também não era uma boa idéia, mas aí a gente já está perdendo a objetividade e instituto sério tem que praticar a exatidão.

Pelo Brasil afora, a estatal das informações das tragédias teria anos de trabalho apenas para carregar seus arquivos mais básicos. Desabamento do edifício Palace II, no mesmo estado do Rio, em fevereiro de 98. Motor da tragédia: desonestidade assassina, pra dizer o mínimo. Pavilhão da Gameleira, Belo Horizonte, fevereiro de 1971, 69 operários mortos, muitos deles os mesmos que haviam alertado para os ruídos que denunciavam a fragilidade da construção. Motor da tragédia: pressa governamental, traduzido em data de inauguração.

Dessa mesma natureza é o motor da tragédia que marcou a fundação de Brasília, o chamado “massacre da Pacheco Fernandes”, um episódio sempre envolto em suspeitas, desmentidos e olhares de lado. Um assunto que definitivamente não pega bem na mesa do almoço e menos ainda neste ano do aniversário de 50 anos da capital, a serem comemorados no próximo dia 21. Uma revolta no refeitório da construtora, que teria servido carne estragada aos candangos, teria resultado numa repressão policial de natureza tão brutal que caminhões de corpos teriam sido removidos do local e enterrados em lugar até hoje ignorado. A história foi recuperada e contada pelo cineasta paraibano-brasiliense Vladirmir de Carvalho, no documentário “Conterrêneo Velho de Guerra”. Motor da tragédia? Neste caso, talvez nem faça sentido perguntar. É um caso que daria muito trabalho aos responsáveis pela catalogação do IBGE das tragédias.

De qualquer maneira, para agilizar as atividades e desburocratizar um pouco os trabalhos, o IBGE das desgraças bem que poderia iniciar seus arquivos somente com os eventos ocorridos a partir deste 2010. Ainda estamos em abril, mas o Brasil e o mundo já têm material suficiente para ocupar os cientistas pelas próximas décadas. Porque este 2010, desde que Angra dos Reis começou a ser desmanchar em pasta de lama, areia e mar com aquela pousada parecendo uma casinha de papelão diante da fúria da natureza, parece estar sendo uma amostra do fim do mundo como nenhum Antônio Conselheiro jamais previu. É uma sucessão de calamidades, como a Prefeitura de Natal na gestão atual: a gente mal tem tempo de ser recuperar de uma péssima idéia apresentada pelo poder público, e vem outra, pior ainda.

Como se Deus, o imponderável, o absoluto ou como quer que você o chame, tivesse resolvido fazer uma sinistra experiência. Compactar num mesmo ano tudo de ruim que pode acontecer envolvendo a natureza, o homem e o poder público. Haiti, Chile, Angra. Terremotos, enchentes, desabamentos. A morte coletiva. Um teste, um ano do tipo Jó, pra ver até onde essa criatura mesquinha que somos nós pode suportar. O motor de todas as tragédias talvez seja algo maior do que a prefeitura, o lixão, o índice pluviométrico e a especulação de que pouco ou nada se fala. O motor final de todas as tragédias talvez seja a nossa própria existência como espécie habitante do planeta.

*Publicado no Novo Jornal (Natal - RN)

Um comentário:

Rosália Maria disse...

E de quem será a culpa do espaço aéreo de vários países europeus estarem fechados? Eu cá com meus botões, acho que é o começo do fim do mundo. Segundo li, a última vez que esse vulcão entrou em erupção, ficou 2 anos soltando fogo; numa época que não havia destruição da natureza. Já pensou as dondocas de Natal não poderem viajar durante 2 anos para europa??? Qual vai ser o assunto das conversas?
Tou preocupada.