segunda-feira, 15 de junho de 2009

Comida de milho ao luar de Acari em Brasília (1)

Outro dia, assistindo a um documentário sobre o trabalho do fotógrafo Evandro Teixeira, conhecido não só pela atuação no fotojornalismo do “Jornal do Brasil” dos áureos tempos mas também por um ensaio publicado em livro sobre os velhinhos centenários de Canudos, deparei com um comentário que me deixou meio cismado. Comentário feito por um jornalista que admiro, Fritz Utzeri, também do “Jornal do Brasil” daqueles tempos. Fritz, inteligente, gordo, carioca e simpático como se espera de alguém que reúne todas essas características, comenta várias fotos de Evandro, mas o que me chamou a atenção foi o que disse de uma delas. A imagem captada é de um casal que acabou de sair da igreja, ainda em trajes de noivo e noiva, mas sozinhos na foto, sem sombra de mais ninguém ou de qualquer festa matrimonial.

A aparência dos noivos é de um desencanto só. As roupas só não são de humildade franciscana porque, afinal de contas, são roupas para casar – e mesmo as pessoas mais pobres valorizam a importância da roupa em ocasiões muito esperadas. Os rostos sugerem mais máscaras mortuárias do que nubentes excitados. A postura, então, é de quem muito raramente se põe diante de um equipamento fotográfico. Lembro que a foto foi feita em Paraty. E Fritz analisa: é a imagem de dois seres humanos sem qualquer perspectiva, cujo casamento anuncia mais o fim de uma linhagem arruinada do que qualquer chance de procriação de uma espécie evoluída como convém ao ser humano.

Bem sei que nada disso tem a ver com canjica, pamonha e outros quitutes da estação – e menos ainda com o arraiá dos acarienses ausentes que Rejane promoveu como sempre na base do improviso que dá certo este final de semana aqui em casa. Mas já chego lá. Por enquanto, peço um pouquinho mais de paciência. Ocorre-me que a análise devastadora que Fritz Utzeri constrói diante da fotografia do casal pobre em Paraty feita por Evandro Teixeira contraria um conceito que venho alimentando sobretudo nos últimos anos. É a idéia de que todo ser humano tem sua riqueza, por maior que seja a indigência – material, moral, regional, espiritual ou o que seja – em torno dele. A vida inteira somos convocados a eleger modelos de eficiência, desempenho, inteligência, sucesso e afins no mesmo ritmo em que somos chamados a condenar, relegar, abstrair ao ponto do desaparecimento aquelas pessoas ou grupo de pessoas que não se enquadram naqueles parâmetros. E assim desistimos muito facilmente de quem não atende à nossa mais apressada expectativa.

É bem verdade que um país – sobretudo um país como o Brasil, esse gigante incompleto que tropeça tanto quanto caminha, embora a gente, estando dentro dele, não perceba o embalo da caminhada – precisa de pessoas e grupos de pessoas que façam as coisas andarem, que batalhem por melhorias de toda espécie, que dêem exemplo daquela dedicação que resulta em sucesso – se não completo, ao menos parcial, mas que sinaliza um rumo a seguir. Mas a primeira impressão das coisas e das pessoas, assim como dos grupos de pessoas, pode enganar muito.

Já encerro essas digressões e caio no arraial, mas ainda preciso só de mais algumas linhas – me acompanhe: sertanejos do Seridó, somos pobres ancestrais se o amigo nos submeter a réguas de comparação entre descendentes dos fundadores de outras partes do país, desde sempre mais prósperas e desenvolvidas. Somos, pois, tal o casal da foto de Evandro Teixeira - e mesmo admirando a capacidade de análise de Fritz, é afinal com eles que mais me identifico. Mas o nosso estranhamento diante de um equipamento fotográfico, como diante do primeiro automóvel ou do último computador, pode revelar antes uma precaução civilizatória do que uma entrega automática. E, agindo assim, somos bem menos mocorongos do que imagina o velho jornalista diante da fotografia. E olhe que o casal da foto era de Paraty, estado do Rio de Janeiro. Haja régua para medir essas distâncias culturais. O fato é que cada cultura tem seus caprichos e é aqui que chego, se não ainda ao arraiá, pelo menos à canjica e ao mugunzá (e, por falar nesse último prato, eu me lembro da canção de Petrúcio Amorim, que pergunta ao sulista apressado: “quem é você pra derramar meu mugunzá?” e, considerando que fui compreendido, fecho o parênteses).

Acontece que, tão pobres e mocorongos quanto o casal da foto, éramos eu e meus pais no Seridó dos anos 70. Mas, aí é que está a questão, yes, nós tínhamos cultura e tradição. Eis que, chegado o mês de junho, era sagrado o dia da preparação da “comida de milho”. Uma coisa rápida, de um final de semana, mas marcante no tempo de duração que as coisas têm na infância. Minha mãe convocava amigas, parentes, vizinhas e visitantes eventuais para o que parecia ser um grande festival gastronômico – um happening na cozinha, uma festa de interior sem sair de casa, que era o espetáculo de reunir todas aquelas mulheres equipadas como colheres de pau e caçarolas, entre o fogo de verdade do fogão de alvenaria triangular que havia num canto e o fogão de gás em outra latitude do cômodo. A grande mesa que havia na cozinha, desde sempre com seu tampo gigante coberto por um encerado cor de laranja madura – e sobre o qual ainda se punha outro, ilustrado por imagens pra lá de realistas de frutas coloridas – cobria-se de ingredientes, panelas, copos com substâncias cor de nada, pós de consistência esfumaçada e uma quantidade impressionante da matéria prima disso tudo, que eram as espigas de milho. Por todo canto, havia palha de milho descascado – como por todo lado havia espigas estalando de vegetabilidade, prontas para virar pamonha e canjica, que era, no final das contas, o que mais se cozinhava.

À noite, comiam-se os quitutes, não sem antes dividir com as mesmas pessoas que haviam participado, total ou parcialmente, da grande jornada vespertina na cozinha. Depois, as cadeiras de fios eram levadas para a rua de terra batida onde a gente morava, em frente de casa, para acender a fogueira. Meus pais me davam fogos que não consideravam muito perigosos, do tipo chumbinho de estourar barulho no chão e chuveiro de espalhar luz no ar, ouvia-se algum Luiz Gonzaga quando já se tinha uma radiola, a noite caminhava, o sono chegava – e estava realizada a festa. Se Evandro Teixeira, afinal também ele um nordestino pobre nascido no interior da Bahia, passasse por ali e nos fotografasse, talvez colhesse não a alegria inerente ao festejo, mas o espanto de quem não está acostumado a tais modernidades. E talvez a foto saísse com aquela cara de linhagem prestes a ser extinta, como viu Fritz olhando a imagem do casal recém-casado em Paraty. Espero não estar enganado, mas a lembrança da humildade que havia em tudo o que éramos me abastece de uma sensibilidade meio matuta que não me deixa julgar como falida a aparência de coisas e pessoas onde ainda pode haver alguma chama, brilhante como as luzes do chuveiro, por baixo do silêncio de lago parado e opaco que é o olhar sem chumbo com que elas, por sua vez, nos vêem.

E o arraiá dos acarienses ausentes propriamente dito fica para a próxima postagem.

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