
terça-feira, 31 de março de 2009
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quinta-feira, 19 de março de 2009
Inimigo público

sábado, 14 de março de 2009
A imagem do som




Paraíba, meu amor

Pois Campina Grande me deixou orgulhoso. Por onde passo, de Formosa, aqui em Goiás, até Carnaúba dos Dantas, lá no meu Seridó potiguar, noto que tudo cresceu, agigantou-se, movimentou-se, numa onda de fortalecimento das outrora pequenas economias do Brasil interior por tanto tempo tão esquecido pelos cabeças dos litorais. Em compensação, do ponto de vista da urbanidade, da organização, da prudência social e similares, tudo piorou na mesma proporção e parece que acompanhando o mesmo ritmo da fartura financeira. Não estou condenando o crescimento econômico das grandes cidades, das cidades médias e dos pequenos municípios do interior - era mais que necessário, especialmente no Nordeste. Estou reclamando da falta de uma coisa geral que a gente pode chamar de educação e que corra paralelamente a esse crescimento. Se houvesse - e mesmo que se queira que haja, é algo no que se investe hoje para colher rendimentos pelo menos dez anos mais tarde - , Carnaúba dos Dantas estaria mais pra-frente, sim, mas com menos balbúrdia na sua rua principal, que parece mais a Índia de Gloria Perez; assim como Formosa, aqui pertinho, teria provavelmente um trânsito mais disciplinado que a fizesse mais afortunada mas menos tumultuada.
E chegamos a Campina Grande: pois Campina me deixou orgulhoso. De todos os lugares que vi, ainda que muito rapidamente, foi o único que me pareceu igualmente mais abastado - embora sempre me tenha parecido uma cidade rica, e acho que sempre o foi - mas sem abrir mão de uma organização mínima que parece até estar estampada na figura dos seus habitantes. Pode ser engano provocado pelo itinerário rápido - repito, foi uma estada de menos de um dia - mas achei a cidade limpa, disciplinada, pouco barulhenta, clara e espaçosa mesmo com, como acontece com todos os lugares hoje em dia, um grande número de carros nas ruas. Sem falar numa ruma de sebos que achei bem no lugar onde parei, aquela praça perto do antigo cinema Capitólio.
Essa foi a razão favorável a que me referi lá no início. A parcela desfavorável nessa balança paraibana veio em João Pessoa. Há uns cinco ou seis anos, estivemos lá, eu e Rejane, ainda sem os meninos, em férias bem agradáveis de dois dias. Agora, voltamos. Um colega de trabalho que visita periodicamente a cidade em férias e havia vindo pouco antes da gente advertiu: o ruim é que agora a cidade está cheia de pedintes. E é verdade. Não que a gente tenha constatado o que o colega disse - a gente meio que foi esbofeteado por essa evidência, o que é muito diferente. João Pessoa, essa Brasília à beira mar de normalmente tão calma, também tão organizada, até meio tediosa de tão quieta, parece ter sido invadida por uma legião de pedintes dos mais variados tipos - desde o cara de pau absoluto de 18 anos até o ancião com a perna enfaixada bem na porta do shopping center, onde mais? Voltamos com uma imagem ligeiramente arranhada - e olhe que nós não somos gente que não suporta pobre, pedinte, petistas e outros espécimes "dessa raça" como diria um certo político brasileiro - ao contrário, nós, por graça de origem, de certa forma ainda fazemos parte dela.
Mas é que fica a impressão nascente de que, com o pequeno impulso no turismo local - impulso ainda bem incipiente perto do que se deu em Natal - já há um apelo no ar que faz as pessoas tentarem tirar proveito da maior quantidade de dinheiro em circulação, e de uma das piores maneiras possíveis. Gonzagão, coitado, já deve ter dado umas cem voltas em torno dele mesmo dentro do túmulo. Num país que, com crise ou sem crise, experimentou uma redistribuição de renda inédita e um aumento na capilaridade dos dutos por onde circula o dinheiro pouco visto, não se justifica aquela quantidade de pedintes nas ruas de João Pessoa. Depõe contra o espírito de certo segmento dos paraibanos - infelizmente, tenho que dizer, de nós, nordestinos em geral. E se você acha que estou sendo autopreconceituoso, eu lhe cito um outro exemplo que infelizmente vem há muito mais tempo causando um rombo na imagem da Paraíba: aquela extorsão oficial que se dá nos postos da Operação Manzuá, quando se entra ou sai do estado. Não foi vítima ainda? Quando for à Paraíba, meu caro, leve um trocadinho para dar ao guarda rodoviário da divisa, caso contrário ele pode criar caso com você.
E não acabou: volto e sai a notícia do desfecho - será mesmo desfecho? - daquela história do processo contra o (então) governador Cássio Cunha Lima. Depois de depor e repor o governador no cargo várias vezes, como se o cidadão paraibano, eleitor ou não do tucano Cássio, merecesse assistir a essa violência institucional, finalmente a Justiça Eleitoral o removeu o cargo. Bem no meio do mandato, pois não? E dando posse ao adversário mais frontal, correto? Isso é lá procedimento jurídico que se respeite, se reconheça e se cumpra? Não seria o caso de demover dos seus cargos os próprios homens da Justiça por terem demorado tanto para julgar a denúncia - deixando o cidadão, o maior prejudicado pelo derruba-e-repõe-e-derruba-de-novo em expectativa e desamparo? Tive pena da Paraíba e dos paraibanos ao saber do veredicto do TSE, me lembrei da Operação Manzuá que também entorta a lei pelas mãos de quem mais deveria cumpri-la, veio à mente a invasão dos pedintes ansiosos por levar o deles na incipiente explosão do turismo em João Pessoa.
Salvou-se Campina Grande, do Açude Velho (na foto), ainda bem, Tetê. Meu relicário não se quebrou. Mas a continuar assim, parodiando o baiano Gregório de Matos, "triste Paraíba, ó quão dessemelhante..."
Rumo ao Dormitório da tartaruga

- (...) logo volto para o Norte para visitar a mata úmida e as montanhas enevoadas da minha infância e meus velhos amigos intelectuais amargos e meus velhos amigos lenhadores bêbados, por Deus, Ray, você não terá vivido até ir lá comigo, ou sozinho. E daí eu vou para o Japão e vou caminhar por todo aquele país montanhoso para encontrar templozinhos antigos e escondidos e esquecidos nas montanhas e velhos sábios de cento e nove anos rezando para Kwannon em cabanas e meditando tanto que quando saem da meditação riem de tudo o que se mexe.
Peço uma porção de paciência zen aos sábios leitores do Sopão e acrescento só mais um trecho. Fique aí que vale a pena:
- Chamei o meu novo bosque de "Bosque da Árvore Geminada" por causa dos dois troncos de árvore nos quais eu me recostava, que se enrolavam um no outro, brotos esbranquiçados brilhando brancos na noite e assinalando, dezenas de metros à frente, o lugar para onde eu me dirigia, apesar de o velho Bob (o cão da família) esbranquiçado me conduzir pela trilha escura. (...) centenas de quilômetros de rochas cobertas de neve pura e lagos virgens e florestas altas, e lá embaixo, em vez do mundo, vi um mar de nuvens de marshmallow planas como um telhado, que se escondiam por quilômetros e quilômetros em todas as direções, transformando todos os vales em creme, as chamadas nuvens de estágio baixo, que vistas do meu pico de dois mil metros pareciam estar muito lá embaixo. (...) juntei lenha e identifiquei marcos geográficos com a minha panorâmica e meu detector de incêndios e dei nome a todas as pedras e fissuras mágicas, nomes que Japhy (o amigo de Ray, que é quem fala no primeiro trecho citado) cantara para mim com tanta frequencia: montanha Jack, monte Terror, monte Fury, monte Challenger (...)
E o livro todo é esse desfiar de especulação verbal e poética, embora impressa em prosa que jorra da boca de seu narrador compulsivo, sobre meditações naturalmente tão pouco concretas quando tangíveis são as paisagens que provocam tal exercício. Livro para se ler antes de sair de férias, na verdade, e não ao se retornar delas - porque, sem se tratar de auto-ajuda explícita (e há muito por aí de auto-ajuda não explícita sendo apreciada por gente que tem horror à auto-ajuda) prepara o espírito para viajar no sentido maior da palavra. Fiquei feliz por, mesmo lendo o livro na volta, constatar que, ao menos por algum tempo, tive nessas férias um instante de contemplação e meditação não planejada e tampouco sistematizada lá no "Dormitório da tartaruga". De resto, um lugar à disposição de vocês, como já ficou claro na postagem "Solar do Gargalheiras". A Semana Santa vem aí: que tal comprar o livrinho do Kerouac - disponível em qualquer boteco, naquelas prateleiras que giram com as capinhas da série L&PM Pocket, e escolher um lugar propício antes de arrumar as malas? Pode ser São Miguel, Gargalheiras, Santa Rita (né, Nossa Mana?), Exu Queimado...
Em todos esses citados, há a certeza de se encontrar um recanto eventualmente deserto - mas não inacessível - onde se pode confrontar a sujeira acumulada na cabeça com a mensagem muda da paisagem natural e, em consequência quase automática, sentir a mente se esvaziar de todo o supérfluo.
Mais do mesmo

- Um dia alguém ainda escreverá sobre as relações entre o sobrenatural e o jazz. Talvez só o sobrenatural seja capaz de explicar Clifford Brown.
- Desde Charlie Parker, a romântica e ingênua ideia de que heroína e genialidade eram sinônimos tornou-se um clichê do jazz. Os músicos que iam morrendo pelo caminho não assustavam os novos usuários.
- É a velha assertiva de preservar o mito romântico do jazzista como uma espécie de "bom selvagem" de Rosseau: o negro miserável e perseguido, escravizado à música e à droga, mas firme e incorruptível no gueto, em seu quarto cheio de percevejos. Duke Ellington, a caminho de seu alfaiate, tremia de medo dessa teoria.
- Louis Armstrong não foi apenas o cantor de jazz mais influente do século XX. Foi também o cantor popular mais influente do século.
- O número de cantoras que pensam dever a Billie (Holliday) sem saber que devem a Louis (Armstrong) é infindável.
- Bing Crosby foi o primeiro intérprete, branco ou negro, a assimilar a importância de Louis Armstrong como cantor. Dick Farney e Lúcio Alves - sim, todos são filhos estilísticos de Bing, donde netos de Louis. E, se se pensar nos discípulos de Sinatra (bisnetos de Louis!), a lista não teria mais fim.
- Chat Baker: c0mo trompetista, ele até que foi interessante. Talvez por ter sido o primeiro a tentar ser o Miles Davis branco. Mas Chat se preocupou tanto em reproduzir a sonoridade suave e relaxada de Miles que se esqueceu de assimilar o que este tinha e melhor: a riqueza de ideias em cada solo.
- Não que Ella fosse a "melhor" - embora houvesse quem a definisse como a melhor de todas, por ser mais completa do que Billie, embora menos emocional, e mais emocional do que Sarah (Vaughan), embora não tão completa.
- De Nat "King" Cole a Carmem McRae, de Johny Mathis a Diana Krall - todos mestres de um tipo de canto em que a letra é tão importante que se torna quase um recitativo. É um tipo de estilo a que nos acostumamos a dar de barato, como se tivesse sempre existido, mas, na verdade, só se impôs a partir da Segunda Guerra, quando os crooners se libertaram ds big bands e começaram a cantar com trios ou com pequenos conjuntos que lhes davam mais liberdade.
- Cole (Porter) trabalhava no limite entre a finesse e a grossura, e contrabandeava os mais ricos duplos sentidos para suas letras. Mesmo quando celebrava uma prostituta (em "Love for sale"), era como se falasse de uma rainha.
- Para a geração de Porter, (Rodgers &) Hart, (George) Gerswin, (Johny) Mercer e Dorothy Field, a construpção de uma letra era como projetar uma casa: com estrutura, fundações, divisão de aposentos e decoração de interiores. Um letrista daquela turma podia passar semanas em busca de uma rima interna. Não se fazia pouco da inteligência do ouvinte - embora eu suspeite que o temor de cada um daqueles gênios era o de ser julgado pelos seus próprios pares.
- Sua síncope parecia estar nas regiões mais sombrias, densas, pesadas da música: as tonalidades cavernosas do sax-barítono, do trombone-baixo e da mão esquerda do piano. Toda essa riqueza, contida em seus arranjos e composições, começaram a inundar e a fertilizar uma geração de músicos brasileiros - não fosse a súbita mudança da música popular a partir de 1966, quando os praticantes de vários instrumentos que não as guitarras foram praticamente expulsos do mercado. (sobre Moacir Santos)