sábado, 22 de janeiro de 2011
Vocaciones 4.5
Quando os pratos rareiam na mesa do SOPÃO, é sinal de que o cozinheiro entrou de férias – o que, à parte o silêncio gráfico na página, é sempre bom. Mas quando as ditas férias começam numa noite em claro sobre piso de aeroporto e terminam em vigília noturna de duas horas e meia aguardando atendimento no hospital pediátrico, já não se pode dizer o mesmo. As férias de verão são assim, traiçoeiras e imprevisíveis. Tanto podem lhe brindar com uma piscina natural que não estava no roteiro quanto lhe tirar a tranqüilidade com aquela diarréia viral que parece ter atacado a cidade inteira – a sua animada pessoa em férias incluída.
Foi assim – se bem que ligeiramente pior, com alguns intervalos de bom proveito, que todo dia sombrio também tem direito a uma nesga de sol. Quase vinte dias, durante os quais se viajou de Acari a João Pessoa de ônibus, assistiu-se a um belo show de Margareth Menezes bem na divisa de Tambaú com Cabo Branco em Jonhy People, concluiu-se a leitura pastosa, embora finíssima, de um Elias Canetti embasbacado com o mundo pré-nazismo (“O Nome do Jogo”, parte final da trilogia de memórias daquele cidadão tão século XX), curtiu-se uma maratona dupla de soro na veia no hospital de Tibau do Sul, e até se deitou os olhos sobre a paisagem de areia branquinha daquela parte de Pipa que se espraia entre a pousada da Bárbara e a passarela de madeira que deu ao local um ar de balneário de novela.
João Pessoa foram dois dias de férias dentro das férias, com a primeira folga que concedemos aos meninos depois de cinco anos quase seis. Um rápido tour ciceroneado por alguma culpa materno-paterna durante o qual se aproveitou o quanto foi possível uma cidade que parece a Natal de duas décadas atrás – ou o que a capital de Poti poderia ter sido caso tivesse resguardado em si um pouco mais da parcimônia que todas as pessoas e todas as cidades precisam ter e manter. Multidão na praia para ver os shows gratuitos da temporada, público local de pé na areia, Chico Cesar de secretário municipal de Cultura – seriedade, respeito e festa, uma equação que a terra Paraíba tem a ensinar aos seus vizinhos deslumbrados com o turismo estrangeiro – aliás, em queda, o que deve funcionar com a ponta fina da agulha que estoura bolhas especulativas, espera-se.
Acari city não nos levou muito tempo, só o bastante para torar pelo caminho de letras do velho Canetti, que o cenário em volta favorece a imersão em cenário estranho de além-mar e guerras. Minha amiga Guia Bezerra quase me acorrenta, põe cadeado e me conduz, qual prisioneiro da falta de vontade, à festa de São Sebastião em Parelhas – como se eu tivesse a obrigação de beijar minhas pedras. Como não sou político, fico no meu canto e lido bem com essa culpa de não rimar férias com obrigação. A custo, consegui explicar minha vocação para vocaciones no limite do descompromisso, seja com horários, encontros ou rememorações. No acerto de contas, fechamos eu e Guia com um passeio ao litoral sul para além dos caminhos que costumo percorrer. Parelhas fica pra depois, em período sem festa, pra estar em casa na casa nova de minha mãe com os meninos. Mas sem horas marcadas, que é como prefiro.
À guisa de pavilhões e procissões, Guia me guiou até as piscinas naturais além de Búzios, onde pude caminhar feliz sobre as águas qual um Cristo de bermudas no paraíso perdido dos veranistas. Andamos sobre as águas, eu, Cecília e Bernardo, in Camurupim Water Town: um lugar pra ficar marcado na agenda onde se anota destinos para um mês inteiro, sem barulho e com sossego. Neste meio tempo, o viajante alquebrado pela virose-caganeira ainda teve tempo de acordar um dia e descobrir que acabara de converter seu gasto motor para a marca 4.5 – num dia 19 de janeiro que, na verdade, sempre me evoca mais a doce e fatal overdose de Elis Regina. Se Rejane não me lembra, capaz de eu nem ter notado. Não por soberba diante da existência, mas por distração frente ao calendário.
De tal forma que, contrariado pelas cólicas e pelo estúpido acidente com Bernardo – que, ia esquecendo de explicitar de tão nefasto, uma manhã queimou a mão nos canos de água fervente de um self service de estrutura improvisada na Maria Lacerda – fiz do verão uma incubadora. Socialmente, hibernei, como hão de ter notado os amigos. Não visitei ninguém, pra não macular com meu humor instável os ventos que cada um traz em si na temporada. Só fomos ver mesmo Márcia, dona do título vitalício de ex-babá dos nossos infantes, que se casou, ingressou em emprego novo, mudou de vida e merece o nosso incentivo: quando você for comer no Camarões, aquele mais antigo e classudo do lado de cima da estrada de Ponta Negra, lembre que parte da asseada aparência do local deve-se ao humilde mas valioso trabalho dela. Também faltou um bate-papo que estava programado com Tetê Bezerra, prejudicado pelas datas, dela e nossa. Fica pras próximas, Tetê e todo mundo, quando pelo menos não teremos o compromisso de comparecer ao hospital de dois em dois dias pra trocar o curativo de Bernardo – ou, por outra, de me hospedar duas vezes no mesmo dia, manhanzinha cedo e noite alta, no posto médico de Tibau do Sul onde, por sinal, preciso registrar, fui tratado como um barão pelo doutor Sérgio e sua equipe (melhor do que Bernardo na Promater, registre-se igualmente e por justiça).
Enfim, quando mais o final da temporada se aproximava, maior a minha vontade de retomar a rotina sem graça de Brasília Highway. Saudade de suas vias certinhas, seus gramadinhos comportados, sua corrupçãozinha macilenta e sem zum-zum-zum. Como disse Tiquinha, cansada de ver Rejane passando roupa pela janela do Guaíra, ao saber da nossa volta para casa: “Rejane vai descansar em Brasília”. A rosa de pedra de New Parnamirim acertou na mosca. E aqui estamos, pra retomar trabalho, casa, rotina e SOPÃO. As férias podem não ter sido o melhor de bom, mas cumpriram sua obrigação constitucional prevista no estatuto de cada um de fazer o ser humano sentir falta daquilo de que tanto reclama – a mesmice, essa delícia.
*Sobre "O Jogo dos Olhos" de Elias Canetti, leia mais aqui.
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3 comentários:
espero que os dois - pai e filho- estejam melhores. ah, tb lembrei do seu aniversário, embora o senhor não tenha lembrado de dizer que estava na terra. hibernação, sei...(acho que vou ficar de mal).
p.s.: a anônima sou eu, ana sua mana.
brigou comigo também, tia sebá?
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